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MEDITAÇÕES

A Palavra de Deus é a relíquia das relíquidas, a única, na verdade, que nós, cristãos, reconhecemos e temos. (MARTIN LUTERO)

“Fora de si” e “possuído por Belzebu”

Desde cedo, a mensagem de Jesus mexeu com estruturas importantes do seu tempo, como família e igreja. Ainda hoje, essas instituições sociais representam proteção, segurança, amparo e orientação. Um exemplo do incômodo que Jesus representava encontramos no evangelho de Marcos 3.20-35.

 

Quanto mais crescia a sua fama, maior era a aglomeração de pessoas na porta de casa. O tumulto era tão grande que prejudicava a comunhão de mesa: “nem podiam comer” (v. 20). Os parentes de Jesus consideravam que ele “estava fora de si”. A solução seria prender Jesus em casa.

 

Um grupo de escribas, representando a igreja da época, vindos de Jerusalém, acusava Jesus de estar possuído por Belzebu, o maioral dos demônios. Para eles, só isso explicava como era possível que Jesus expulsasse demônios das pessoas (v. 22) Quem era possuído por tais espíritos imundos deveria ficar afastado da família e da comunidade. Era o que previa a lei de pureza e impureza, no livro de Levíticos.

 

Família e igreja estavam em conflito com Jesus. Entendiam que as suas palavras e ações estavam pervertendo a ordem das coisas. Era preciso tomar uma providência. Era preciso tirar Jesus de circulação, fazer com que se calasse e se relacionasse. Quem daria o primeiro passo? A família, os parentes, prendendo Jesus em casa? Ou a igreja, os escribas, exigindo o seu afastamento da comunidade, das pessoas, conforme os ditames da Lei?

 

Percebendo a tensão, quem dá o primeiro passo é Jesus. Ele chama para conversar. E começa fazendo uma observação aos escribas. O argumento deles não tem sentido. Reino dividido não subsiste, disse Jesus. A luta entre grupos, seja numa família ou em um país leva à destruição dessas instituições  importantes para a vida das pessoas. Ninguém pode querer isso.

 

Nem mesmo Satanás vai querer expulsar a si mesmo. Por isso, Jesus não pode estar possuído pelo maioral dos demônios. Com esse argumento, ele chamou os escribas à razão, ao raciocínio lógico. Se Jesus consegue expulsar demônios que dominam e controlam a vida das pessoas é porque ele tem força suficiente para amarrá-los e saquear a sua casa (v. 27). Acusar Jesus de estar “dominado por um espírito mau”, imundo, era um pecado imperdoável contra o Espírito Santo, sem perdão, portanto.

A cosmologia, no tempo de Jesus, via a terra e os céus povoados de espíritos imundos. Isso nem sempre foi assim. A partir do Século III a.C as coisas começam a mudar. O Mito dos Vigilantes, passa a influenciar os judaísmos e a literatura apocalíptica. Segundo o Mito, os vigilantes eram seres celestiais, que se encantaram pela beleza das mulheres humanas a ponto de conspirarem contra Deus e ultrapassarem as fronteiras, vindo a ter filhos com elas. “Da relação mulheres-Vigilantes nasceram os Gigantes, seres híbridos que comeram toda a alimentação da terra, e depois os próprios seres humanos. Com o derramamento de sangue a humanidade clamou a Deus.” (Kenner R. C. Terra). A resposta de Deus, foi o envio dos anjos Miguel, Sariel, Rafael e Gabriel, para destruir os gigantes. Com a morte, seus espíritos foram liberados gerando uma proliferação de maus espíritos ou demônios. O livro, não canônico, de 1 Enoque descreve assim a situação:

“Agora, os Gigantes nascidos da união de espírito com carne serão chamados de espíritos malignos na terra e sobre a terra terão sua morada (...), maus espíritos serão sobre a terra. Os espíritos dos Gigantes, os Nefilins oprimem, corrompem, atacam, pelejam, promovem a destruição; comem e não se fartam, bebem e não matam a sede. Esses espíritos atacarão homens e mulheres, pois desses procederam (...). Aonde quer que haja sido os espíritos de seu corpo, pereça sua carne até o dia da grande consumação do juízo, com a qual o universo perecerá com os vigilantes e ímpios “(15, 8-16,1). 

Rastros desses Gigantes e os seus males encontramos em Gênesis 6.4: “Havia gigantes na terra naquele tempo e também depois, quando os filhos de Deus tiveram relações com as filhas dos homens e estas lhes deram filhos. Esses gigantes foram os heróis dos tempos antigos, homens famosos”. No princípio, esses espíritos dos gigantes podiam ser bons ou maus.

No tempo de Jesus, no entanto, eram todos maus. Esses “espíritos imundos”, já tinham nome, hierarquia e um reino infernal, pois habitavam o mundo inferior (“ínferos”, em latim). Belzebu, por exemplo, era conhecido como “O Quarto”. Só perdia em poder para Lúcifer, Satã e Belfegor. Aliás, esse nome vem de dois deuses cananeus, “Baal” (deus dos trovões, da agricultura, da fertilidade e do vinho) e “Zebub” (deus das moscas e da pestilência). Os dois eram inimigos ferozes. Em uma batalha épica entre os dois, segundo o mito cananeu, esses dois deuses foram jogados em um profundo abismo. Lá deveriam permanecer para que houvesse harmonia no mundo. 

Os espíritos maus que dominavam o gerazeno, por exemplo, que vivia em sepulcros, se auto identificaram como “Legião”, pois eram muitos (Marcos 5.1ss). Um outro muito famoso até hoje é Mamon, Deus dinheiro. Jesus chamou a atenção para o seu encantamento e poder de dominar a vida das pessoas (Lucas 16.9-13).

De alguma forma, tudo aquilo que bagunçava a vida que as pessoas consideravam “normal”, poderia ser atribuído à ação de um “espírito imundo”, a demônios. Cegos e mudos eram considerados “endemoniados”, conforme Mateus 12.22. O menino que caia no chão, muitas vezes no fogo e na água, desde pequeno, espumando e rangendo os dentes, era considerado possuído por um “espírito mau” (Marcos 9.14ss). Junto com esses, também paralíticos e leprosos precisavam ser retirados do convívio familiar e comunitário, para não contaminar os demais.

Independente do que nós pensamos, hoje, sobre o que seja possessão demoníaca, fato é que Jesus tinha poder para lidar com isso. Mandava o espírito imundo calar a boca e sair da pessoa (Marcos 1.25). Ele chegou a atender o desejo de espíritos imundos de entrar em porcos, desde que saíssem da pessoa e a deixassem viver em paz (Marcos 5.13). Reconheceu que alguns só saem da pessoa com muita fé e oração (Marcos 9.29). Jesus não deixava de atender quem procurava a sua ajuda. Exorcizar, pois, é afastar, expulsar, o mal que aflige a pessoa e domina a sua vida, seja no corpo ou na alma.

Aos seus discípulos Jesus “deu poder e autoridade sobre todos os demônios e para efetuar curas” (Lucas 9.1). Faz parte do discipulado e da missão dos cristãos identificar os espíritos imundos de cada época, que tomam posse e governam as pessoas, impedindo que elas tenham vida digna e possam conviver fraternalmente com as demais pessoas. Exorcizar é libertar as pessoas de tudo aquilo que as oprime. Preconceitos, racismos, machismos, individualismos, amor ao dinheiro, culto ao corpo, violências físicas e verbais e dependências químicas de todas as formas são exemplos de forças e poderes que tomam conta das pessoas e dirigem as suas vidas hoje.

Cumprir com a missão de exorcizar esses males pessoais e sociais é fazer a vontade de Deus e se tornar membro de uma grande família, que se deixa conduzir pelo seu Espírito Santo. De forma nenhuma, Jesus quis diminuir a importância da família, mas dar a ela um propósito maior, fazer vontade de Deus. Quando isso acontece, o número de nossos parentes na fé, irmãos e irmãs, cresce ao infinito.

Certamente, hoje, temos novos instrumentos para lidar com os males do corpo e da alma. Deus mesmo permitiu novos conhecimentos no campo da ciência, especialmente da medicina e da psicologia, para colocar a serviço dessa missão. Já temos remédios para Hanseníase e epilepsia, entre outros males do corpo. O mesmo acontece para o nosso “sair de si”, nossos delírios esquizofrênicos e crises neuróticas, entre outros males da alma. A fé e a oração, no entanto, permanecem como instrumentos pessoais e comunitários fundamentais para o combate de nossos males. A prática da espiritualidade, seja a nível pessoal e/ou comunitário, continua sendo um preventivo e um instrumento eficaz de libertação de tudo aquilo que nos oprime e impede que tenhamos vida em seu sentido pleno (João 10.10).

Pastor Luis Henrique Sievers


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